quinta-feira, 25 de agosto de 2022

RECORTE DE DUAS VIDAS

 



Eram aproximadamente 5 horas da tarde. Nem os anteparos verde-escuros, que protegiam as janelinhas do ônibus, amenizavam o calor abafado em seu interior


Não estava tão cheio. Algumas poltronas ainda estavam vagas, mas isso não fazia o ambiente mais fresco.

Mais atrás, quase em cima da roda traseira, um homem de terno de linho branco amarrotado soltava a gravata para aliviar a respiração.

De vez em quando, retirava o chapéu Ramenzoni de sobre a cabeça e se abanava, enquanto percorria com os olhos as pessoas que viajavam a seu lado.


Nestes momentos, um olhar mais atento observaria suas entradas, bastante pronunciadas para a idade, que devia ser por volta de 35 anos.

Mesmo sentado, com as pernas flexionadas, podia se ver que era alto. Ajeitava-se, como podia, na poltrona.


De repente, alguns minutos depois do campo de aviação, o ônibus fez uma parada brusca, pois algum passageiro itinerante fizera sinal.

Uma nuvem de terra vermelha adentrou pela porta aberta, juntamente com com a passageira que subiu, carregada de pacotes acomodados em uma mala maior.


Mal a porta se fechou, o motorista arrancou tão abruptamente quanto havia parado, largando outra nuvem de terra vermelha para trás e fazendo com que a nova passageira perdesse, por um instante, o equilíbrio.


Em vão o esforço . Os pacotes vieram ao chão.


Naqueles poucos segundos em que a mulher, pega de surpresa , ficou sem ação, o homem de terno branco já estava diante dela, recolhendo os pacotes do chão, acomodando-os no banco, para que ela, depois, pudesse ajeitá-los na mala maior.


"Muito obrigada", disse a moça - "sinto ter incomodado".


"Incômodo nenhum, senhorita", respondeu ele, olhando para o rosto da mulher, que somente agora conseguira se equilibrar.


Um instante apenas…e ele naufragou no par de olhos verdes que encontrou, mirando os seus.


Ela também não ficou incólume. Sentiu a profundidade daquele olhar, o que a fez ruborizar.


Contudo, conseguiu acalmar-se e, quase por educação, ajeitou-se na poltrona ao lado do rapaz, do outro lado do corredor, dando ocasião, assim, para que ele pudesse vê-la de perfil.


Era muito bonita. Cabelos pretos, moldados à linha do pescoço com uma presilha azul turquesa, rosto moreno, nariz reto e lábios bem delineados conferiam - lhe uma aparência quase aristocrática.


Enfiou a mão na bolsa, retirou um espelhinho prateado e retocou a maquiagem. O cavalheiro de terno branco bem que tentou, mas não conseguiu retirar o olhar da recém chegada. 


"Deus do céu, faço esse itinerário todas as semanas e só o que vejo são homens do campo, às vezes uma mulher da lavoura, embarcarem neste ônibus. 


Mas essa mulher é diferente. Muito diferente. Qual será a sua ocupação? O que faz nessa estrada poeirenta? Para onde estará indo?"


As perguntas atravessavam a sua mente velozmente. Espantou-se com a sua própria reação. Não era homem de ficar mexido por qualquer rabo de saia. Mas, tinha que admitir: aquela desconhecida recém chegada o inquietava.


Já ajeitada em seu assento, ela arrumava com as mãos as pequenas caixas na mala semiaberta sobre suas pernas. Parecia concentrada no seu trabalho mas o seu pensamento estava no homem de terno de linho branco que acabara de conhecer...


Encontrar alguém assim nesse tipo de viagem era a última coisa que ela poderia esperar... Ele parecia fino educado...um verdadeiro cavalheiro.


Nada tinha da rudeza dos homens do campo que viajavam naquele ônibus. E tinha um olhar penetrante, pelo qual sentira-se invadida. Estava inquieta em seu íntimo. (Não percebera que a inquietação era recíproca).


Mas, inquieta por quê? Por causa de um desconhecido que acabara de ver pela primeira vez? Logo ela, que se orgulhava por ser uma mulher moderna, liberal, emancipada?


Ah, mas a alma humana é mesmo cheia de mistérios. Conhecia tanta gente, tantos homens, tantos ambientes! E agora estava ela aqui, intimidada por um estranho dentro de um ônibus de interior?


Tinha que admitir. Algo naquele homem mexia com alguma coisa muito íntima dentro de si. Alguma coisa que nem mesmo ela saberia identificar.


"Mas o que está acontecendo comigo? Não estou me reconhecendo... Estou parecendo uma adolescente sonsa dentro deste ônibus, neste fim de mundo".


De repente, vieram à sua lembrança as viagens que fizera a Paris, a Amsterdam e a Frankfurt. Relembrou, vivamente o dia em que entornou sem querer a sua mochila dentro do metrô parisiense.


O cidadão que lia o jornal sentado a sua frente nem piscou os olhos. Aquele dia ela havia se sentido literalmente transparente. Era como se não estivesse naquele trem. Teve que esperar a próxima estação para se inclinar e recolher seus objetos do chão.


O cavalheiro que lia o jornal apenas virou a página como se nada tivesse acontecido. Não que ela achasse que ele deveria ter qualquer obrigação. Mas a sua impassibilidade fizera mal para a autoestima dela.


Agora, tantos anos depois, um outro homem dentro de um ônibus que percorria estradas vicinais servindo a população rural no interior do Brasil decide ter um ato de educação que o cavalheiro francês não fora capaz de ter. Como o mundo de cada pessoa era diferente!


O homem de terno branco gira suas pernas, sentado na poltrona, ficando com os pés no corredor e de frente para ela.


"Perdão, senhorita. Na confusão dos pacotes caídos, nem cheguei a me apresentar. Meu nome é René e sou professor.

Leciono na Escola Agrícola em Pirassununga e estou indo para a minha casa agora, em Catanduva".


Ela olhava atentamente para o seu rosto, enquanto absorvia as suas palavras, mesmo tendo sido apanhada de surpresa.


"Prazer em conhecê-lo, professor. Sou Melissa e trabalho para o governo".


Ele queria saber mais. Na verdade, muito mais. Mas, por recato ou precaução, parou por aí . "Talvez não pretenda partilhar mais sua vida privada"- pensou.


Silenciaram em suas poltronas, enquanto o Expresso Arapocá seguia o seu trajeto. Entrou em Descalvado, onde alguns passageiros desceram e outros subiram. 


Mas a misteriosa mulher permaneceu em seu lugar. Como ele, ela também ainda não chegara ao seu destino.


Já era noitinha quando o ônibus retomou seu trajeto rural avançando pela estrada de rodagem, com destino a São Carlos do Pinhal.


Na rodoviária de São Carlos, já estava escuro quando ela levantou-se na poltrona, sinal inequívoco de que chegara ao seu destino. Enquanto juntava as suas coisas, o professor rascunhava, apressadamente, um pedaço de papel.


No corredor, pouco antes de chegar aos degraus da porta ela sorriu para ele e esboçou um aceno de despedida. Ele estendeu o braço e procurou suas mãos, que apertou, num cumprimento mais formal.


Naqueles segundo em que suas mãos se tocaram, ele passou a ela o pedacinho de papel que havia rabiscado, ainda em dúvida sobre a sua reação.


Mas ela prendeu o papel fortemente entre seus dedos e desceu do ônibus sem olhar para trás.


Sozinho, dentro do ônibus, ele sorriu interiormente. De repente, ficou feliz como um menino que acabara de ganhar um brinquedo.


Teve convicção de que veria outra vez Melissa, que trabalha para o governo.


Acomodada dentro do táxi que sobe a avenida, ela confere as horas em seu relógio de pulso com as horas que marcam o relógio da catedral. São 7:10 da noite. Mais alguns minutos e está diante do magnífico sobrado diante do qual o chofer estaciona. Chegou em casa, afinal.


"Bem-vinda, Dona Melissa!"- cumprimenta, efusivamente, a empregada, que a recebe com um largo sorriso. "A senhora fez boa viagem?"


"Ótima viagem, Júlia. Apenas o calor incomodou um pouco."


Meia hora depois de um reconfortante banho e roupas limpas sobre o corpo, está sentada à mesa de jantar degustando a sopa de legumes preparada carinhosamente por Júlia, que tem a patroa como filha. 


Deliciosa como sempre. 


Passa a língua sobre os lábios e repete o prato sob o olhar satisfeito da empregada.


A cambraia do babydoll acaricia a pele de suas pernas. Sente o toque... imagina a mão do cavalheiro do ônibus a percorrer-lhe as coxas. 


Devaneios apenas.


Está pronta para dormir, mas precisa ainda cumprir o último passo de um ritual todo seu que costumava seguir, sempre que pressentia algo bom a caminho.


Inclina-se sobre o abajur e retira da bolsa o pequeno pedaço de papel que lhe foi entregue na despedida do professor, ainda dentro do ônibus.


Resistira muitas vezes à vontade de ler o que estava escrito. 


Preferira guardar a surpresa para antes de dormir, com o mesmo carinho com que guardava sempre o último quadradinho do tablete de chocolate, o mais precioso, o mais valioso, reservado para o momento mais especial.


Está prestes a acabar com o suspense que ela mesma armara para si . Finalmente, vai ler o que foi escrito.


"Desejo ver você outra vez. Todas as sextas tomo este ônibus, no mesmo horário de hoje. Ficarei muito feliz em recolher os seus pertences novamente, quando o ônibus arrancar. Saudades, René".


Com o coração descompassado, como uma adolescente que acaba de ler a carta enviada pelo namoradinho, deposita o papel sobre o criado mudo, apaga a luz e fecha os olhos para dormir na escuridão, afagando um pensamento... 


"Você me verá novamente, René".



              ©Copyright de Antônio Tadeu Ayres 

RECORTE DE DUAS VIDAS

  Eram aproximadamente 5 horas da tarde. Nem os anteparos verde-escuros, que protegiam as janelinhas do ônibus, amenizavam o calor abafado e...